Com a ratificação da convenção 186 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) pelo governo, brasileiros que trabalham em cruzeiros ou em embarcações comerciais na costa do Brasil poderão ficar regidos pelas leis da bandeira do navio (nacionalidade da embarcação), e não pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), segundo especialistas ouvidos pela Folha.
O Senado aprovou no dia 17 de dezembro um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) ratificando a convenção da OIT que regula os direitos de trabalhadores marítimos, incluindo horas de trabalho e descanso, férias, acomodação, alimentação e proteção à saúde e à segurança.
Muito esperada por empresas do setor de navegação, a norma já foi aprovada na Câmara e no Senado, mas ainda precisa ser sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro para entrar em vigor.
Tudo indica, porém, que não haverá resistência por parte do presidente. Primeiro, porque um dos argumentos de quem defende a ratificação é que a adoção de regras de outros países poderá destravar a geração de empregos no setor, um tema caro para o governo.
Segundo, porque esse discurso também está alinhado ao do filho do presidente Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), relator do projeto no Senado. Durante a votação do PDL, Flávio chegou a dizer que a ratificação da convenção 186 deverá trazer geração de emprego, porque acabará com a insegurança jurídica para empresas estrangeiras que quiserem operar na costa brasileira.
De fato não há um entendimento legal. As turmas do TST (Tribunal Superior do Trabalho) não têm um consenso sobre a aplicação de leis trabalhistas no espaço marítimo. O tribunal já tomou decisões em sentidos opostos, ora considerando as leis do território brasileiro (CLT), ora levando em conta as regras da bandeira do navio (nacionalidade da embarcação).
Com a ratificação da convenção 186 (também chamada de MLC), os especialistas dizem que se chega a um entendimento: o de aplicar as leis da bandeira do navio.
“Era uma confusão. Um risco para quem queria dar emprego a um marítimo brasileiro. Com o Brasil ratificando essa convenção fica definido que vale a legislação da bandeira”, diz Luis Fernando Resano, diretor-executivo da Abac (Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem).
“Vai ser aplicada a lei da bandeira, que no final das contas é a MLC, porque todos os países de tradição marítima adotaram essa convenção”, disse Marcelo Fortes, advogado trabalhista do escritório Fortes e Prado.
Ele afirma que a sobreposição das leis da bandeira do navio à CLT não vem para colocar o trabalhador brasileiro em uma situação de vulnerabilidade, porque todas as nações com tradição marítima aderiram à convenção e tiveram que se adequar às condições mínimas de trabalho estabelecidas pela entidade.
A medida, segundo sua avaliação, surge para trazer uniformidade na forma como as empresas marítimas administram seus tripulantes de diferentes nacionalidades.
“O intuito da OIT desde 2006 foi criar a isonomia para que todos os trabalhadores a bordo tivessem o mesmo regramento jurídico”, diz.
Há, no entanto, quem discuta a validade do argumento de que a convenção 186 vai permitir que leis de fora se sobreponham à CLT. Isso porque, segundo quem atua na área, as regras da OIT são apenas um marco legal que criam condições mínimas, já superadas pelas leis brasileiras.
“Para o trabalhador daqui não vai ter uma grande mudança, porque os marítimos brasileiros, por meio das nossas leis e pelos seus acordos coletivos, já atingiram patamares superiores ao que está ordenado no convênio da OIT”, disse Ricardo Ponzi, presidente da FNTTAA (Federação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Afins).
A advogada trabalhista Denise Arantes, do escritório Mauro Menezes, corrobora o argumento afirmando que, pelo próprio espírito da OIT, não há como uma convenção da entidade vir sobrepor leis que são mais protetivas aos trabalhadores.
“Em sua lei mais geral, a organização diz que a ratificação de alguma convenção sua por um país jamais poderá afetar uma lei daquele Estado que seja mais favorável”, diz.
A advogada afirma também que, mesmo com a ratificação da convenção, a Constituição brasileira se faz soberana.
“A norma é ratificada abaixo da Constituição. Todos os direitos trabalhistas, como jornada de 44 horas semanais, direito a FGTS, direito a férias com [adicional de] 1/3 [do salário] estão previstos no artigo 7º da Constituição. E nenhuma norma pode ser superior a constituição de um país.”
No caso de embarcações de turismo que só permaneçam na costa brasileira, desde 2006 uma resolução do Conselho Nacional de Imigração determina que os navios que fiquem por mais de 30 dias aqui possuam um mínimo de 25% de brasileiros em sua tripulação.
Uma resolução de 2017, porém, reduziu esse percentual em 15% excepcionalmente para as temporadas de 2018-2019, 2019-2020 e 2020-2021, com a perspectiva do aumento do número de embarcações de cruzeiro marítimo.
Quem conhece o setor afirma que o Brasil tem custos elevados devido à pouca infraestrutura dos portos, ao preço alto da praticagem (manobra de navios nos portos) no país e das taxas de embarque e desembarque. Com a adoção da CLT, a operação se tornaria ainda mais cara.
Uma pessoa que acompanha o tema disse à Folha, sob condição de anonimato, que a aplicação das leis brasileiras é hoje mais um motivo para que as empresas não operem na costa do Brasil.
De fato, o número de cruzeiros na costa brasileira já foi quase o triplo dos sete da última temporada. Nos anos 2010 e 2011, o número de embarcações de turismo por aqui chegou a 20.
Uma das medidas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro é aumentar o turismo náutico no país, elevando o número de cruzeiros para 40 até o fim de 2022.
Segundo relatório da Clia Brasil (associação das empresas de cruzeiro) com a FGV (Fundação Getulio Vargas), na temporada 2018/2019, o setor de cruzeiros gerou 32 mil postos de trabalhos, dos quais 2.115 correspondem aos tripulantes de navios.
Fonte: Abtra
Foto: Norwegian Cruise Line/Divulgação