Lauro desceu do ônibus cantando após duas horas de estrada. Na voz, pedaços da música “Tocando em frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira. Ajudou a retirar as bagagens do ônibus, que levara e trouxera 20 pessoas da confraternização de final de ano, num sítio em Pedro de Toledo, no limite entre o Vale do Ribeira e a Baixada Santista.
Depois de tudo no chão, ali no Canal 5, começou a divisão do que sobrou do churrasco. Picanha, maminha, linguiça com queijo, presunto, sucos. Lauro, que voltaria a pé para casa, numa caminhada de 20, 25 minutos, escolheu umas dez latas de cerveja. Tinha experimentado a marca de origem espanhola no churrasco. Adorou.
As latinhas caberiam numa sacola de supermercado. De bagagem, só uma sacolinha de loja de cosméticos, que abrigava uma camiseta sobressalente. A neta e a sobrinha-neta dormiriam na casa da filha e do genro. Voltaria sozinho. Era a receita para abrir mais uma latinha e seguir assobiando o refrão de “Tocando em frente”.
Lauro se despediu de todo mundo, disse que estava “tudo na moral, camarada”, não precisava de carona. Andou três quadras e começou a pingar mais forte. “Dá pra chegar em casa”, pensou.
Mais uma quadra e caiu o pé d’água, daqueles que os pingos machucam, feito chuveiro de jato forte. Lauro decidiu se abrigar embaixo da primeira árvore. A decisão não parecia eficiente, já que escapava do volume de água, mas recebia os pingos selecionados pelas folhas e galhos na cabeça. A camiseta começava a grudar.
Ele decidiu que era melhor continuar a caminhada. Molhado estava. O apartamento seria a linha de chegada. Banho quente e cama. A chuvarada colocaria para fora o restante da últimas latinhas consumidas no churrasco.
Na quadra seguinte, a chuva deu o sinal de que não pararia por reza, macumba ou decreto. A sacola de supermercado se rompeu. Como Lauro já tinha tomado a latinha debaixo da árvore, ele estava com um dos braços livres para encurralar as fujonas no muro. As latinhas insistiam em rolar rumo ao meio-fio. Medidas urgentes para um instante de emergência.
Se estava na chuva, era para não se preservar. Lauro foi para o sacrifício. A sacola menor, com a camiseta sobressalente, estava encharcada. Ele a enrolou até que coubesse no maior bolso da bermuda. E as cervejas? Ele tirou a camiseta, colada ao corpo, transformou-a numa trouxa e salvou as dez latas de cerveja. Deu um nó em cada ponta, jogou a trouxa no ombro e apertou o passo na chuva.
Quinze minutos depois, o telefone tocou na casa da filha. “Lila, cheguei em casa. Não sabe o que aconteceu. Salvei todas as latas de cerveja.” Lauro ria e pensava no aniversário de 71 anos, que faria em dois dias.
Na noite do aniversário, as cervejas estavam lá, trincando de geladas na cozinha. Faziam companhia à concorrente alemã, que o marido da outra filha comprou para a festa.
Só depois do bolo, Lauro confessou: aos 71 anos, a caminhada como anfíbio para salvar as preciosidades espanholas tinha dado a ele uma gripe. Uma febre que o deixou de cama o dia anterior todo, prostrado no sofá diante da TV. Aí todos entenderam porque tamanha quietude no próprio aniversário, mas com o presente estocado no cofre que gela, ali do lado, na cozinha.