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Santos / Cotidiano

Jesus é argentino. O gramofone, mineiro

Adair Júnior tinha acabado de visitar um cliente, de final de expediente, na rua Lucas Fortunato. Se os pés estavam na Vila Mathias, a cabeça só pensava em voltar para casa quando passou por um cara barbudo e de cabelo comprido, sentado na esquina, ao lado de um gramofone. No equipamento, rodava um disco de tango. Em frente, a placa de papelão: “Vende-se”.

Júnior deu a volta no quarteirão, parou o carro e desceu. Músico nas horas vagas, de gaita à viola caipira, ele tinha um sonho de consumo, materializado ao lado daquele sujeito. O gramofone era a Ferrari dele.

Ele chegou perto do vendedor para ter certeza: o gramofone funcionava. E bem! Pensou que a lábia de vendedor profissional, de quem quebrava metas na empresa, servia para convencer o vendedor de ocasião. Começou um diálogo com o sujeito, que só falava espanhol. Era argentino e se chamava Jesus.

Em portunhol, Júnior queria fechar negócio. O argentino sonhava com sua própria viagem bíblica: chegar a Manaus, passar o reveillon se banhando nas águas do rio Amazonas. O preço exigia o milagre: US$ 1 mil.

Júnior tremia, não conseguia convencer o argentino a reduzir o preço. Correu para o carro, apanhou o celular e ligou para a mulher. Renata mal entendia as palavras do marido, que insistia que o gramofone era da RCA, de 1910, com as peças originais. Tempos em que a empresa americana tinha uma filial na América do Sul. Ele explicou que o argentino tinha pressa, encontraria uns amigos na Rodoviária de Santos, pegariam um ônibus para o Espírito Santo. Depois, sei lá.

A turma queria chegar no Amazonas. Trouxeram um monte de quinquilharias para fazer dinheiro e seguir viagem. O trabalho de Jesus era convencer um fiel de que o gramofone valia US$ 1 mil.

No meio da conversa com a esposa, Júnior viu um carro importado parar ao lado do argentino. “O motorista tinha cabeça branca.” Só viu o carro dar partida e o argentino rasgar a placa de Vende-se. Largou o celular sem desligar e correu rumo ao gramofone.

O argentino tinha fechado negócio. O motorista iria até o banco buscar o equivalente em reais. Júnior enrolou o gringo em portunhol e conseguiu sequestrar os dois: Jesus e o gramofone. Resolveu levá-los de carro para casa.

Enquanto isso, Renata ouvia a conversa pelo celular. Júnior explicou a história de novo. “O argentino fedia. Estava f-e-d-i-d-o”, falou umas três vezes.

Chegando em casa, a negociação. Jesus tinha que dar um testemunho de fé e ser solidário com ele. Nova conversa em portunhol, a pressão do casal, a pressa do argentino, sorrisos, água, cafézinho e um roteiro de pontos turísticos em Manaus.

Júnior e Renata tinham visitado a capital amazonense meses antes. Nada de banho ou refeição. O argentino precisava pegar o ônibus na rodoviária. Jesus, ao ver a coleção de discos de vinil e uma vitrola da década de 60, se sensibilizou: Júnior seguia mesmo a religião da música. Negócio fechado.

Júnior levou Jesus até o caminho do Amazonas, ainda que passasse pelo Espírito Santo. Deixou-o na rodoviária de Santos e conheceu a turma de peregrinos. Desejou boa viagem, enquanto só pensava em testar o gramofone.

O gramofone, até recentemente, descansava sobre uma máquina de costura, que pertenceu à mãe de Júnior, no bistrô e empório que ele administra com Renata. Na última ampliação da loja, o equipamento passou a hibernar numa sala anexa, à espera da próxima reforma, quando ganhará um suporte especial.

O argentino viajou feliz com uma máquina fotográfica Kodak, bem velhinha, conta Júnior. E mais US$ 150. Um gramofone a R$ 400, mais ou menos, em moeda da época.

De brinde, o disco de tango e outro causo do mineiro de Minduri que conheceu seu Jesus numa esquina da Vila Mathias, em Santos.   

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